sexta-feira, 15 de abril de 2011

Ensaio sobre a Angústia heiddegeriana e Cegueira de Saramago

A angústia segundo Heidegger é, dentre todos os sentimentos e experiências cognitivas da existência humana, aquela que pode reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade como “ser”. Ela também reúne os pedaços a que o homem é reduzido ao imergir na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. É a angústia que faria o homem elevar-se da traição cometida contra si mesmo, quando se deixa dominar pelas mesquinharias do dia-a-dia, até o autoconhecimento em sua dimensão mais profunda.
A partir da apreensão da angústia, o homem perceber-se-ia como um ser para a morte, como um ser fadado à falibilidade, um ser com um fim determinado. Pois somente o homem é capaz de intuir o absurdo da existência. Ao meu ver, as grandes questões propostas neste contexto heideggeriano são: O que fazer diante daquilo que fizeram de nós?E o que devemos fazer para sairmos desta condição? Quando isso ocorre Heidegger afirma haver duas soluções: ou o homem foge para a vida cotidiana, ou supera a angústia, manifestando seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo.
É importante ressaltar que Heidegger considera o homem como um ser no mundo, que se caracteriza mais propriamente como um ser para a morte. Para fugir de si e de sua própria morte o homem entra em decadência no mundo, embrenhando-se no universo do cotidiano e tornando-se mais um. E, o fato de o homem encontrar-se junto ao mundo o marca, onticamente, como um ser decadente. Dessa forma, a decadência é a determinação ôntica do factual, enquanto que a culpa é a determinação ontológica do existencial. Mas, a angústia, determinação ontológica do existencial da disposição, retira o mundo do homem lançando-o frente às suas possibilidades de ser, ou seja, frente ao nada que ele mesmo é. Nesse sentido, culpa e angústia determinam ontologicamente o homem como “ser” no mundo; isto é, como um ser atirado no mundo, um ser que tem que reafirmar e edificar-se a si mesmo, cotidianamente, durante toda a sua existência. Pois, à medida que o homem existe não lhe resta outra opção senão “ser”, já que somente a sua própria morte permite a ele não mais ter de “ser”. Num outro sentido, a culpa é a determinação ontológica do existencial e também é uma determinação factual.
A angústia sendo a determinação ontológica do existencial, nela o homem é abertura, pois a angústia abre para o homem a possibilidade de ele sair da publicização do cotidiano e assumir o seu ser, seja com propriedade ou impropriedade. Assim, a determinação ôntico-existencial do factual é a decadência e, a determinação ôntico-existencial da disposição é o temor, ou seja, a angústia velada.
Para Heidegger, o “medo e a angústia” representam uma ameaça à aparente tranqüilidade do ser fático. Atirado ao mundo, incluído no mundo, imerso na impropriedade do cotidiano. Mundo no qual o homem tem a sensação de que tudo está em ordem, de que tudo está sob controle, de que ele comanda a sua vida e o em torno dela. Mas, no instante em que surge a angústia o homem é retirado dessa suposta tranqüilidade e é atirado frente à sua condição de ser lançado e abandonado no mundo, de um ente que tem sempre que realizar o seu ser. Portanto, o que cada um pode ser só pode ser efetivado por ele mesmo e não por outrem. Esta imposição de que cada um tem que ser a si mesmo e por si mesmo remete o homem para sua condição primordial, ou seja, “enquanto ser que tem que ser”, quer dizer, na sua condição de estar-lançado, o homem está só no mundo. Nesse contexto, podemos nos perguntar, mas como isso é possível, se ele é constituído de mundo, como então pode ser só, sem mundo? Segundo Heidegger, apesar de o homem se fazer no mundo e a partir do mundo, a sua solidão consiste em que quando ele tenha que efetivar-se como ser no mundo, que ele é, ele não pode contar com o mundo, mas apenas consigo, já que somente ele pode realizar o seu ser. Este momento de solidão do homem oferece a ele a saída da decadência. Lembrando que a solidão que a angústia provoca no homem ao mostrar que a realização de seu ser depende só dele, rompe com a impropriedade do ser fático e lhe oferece a apropriação da intimidade de seu ser. Neste caso, a solidão, enquanto uma propriedade da angústia, singulariza o homem, mostra-lhe a singularidade de sua existência e em seguida deixa-o novamente entregue à sua condição factual. A necessidade de ser do homem e o sentimento de angústia e de solidão dela resultante representam a ameaça constante que persegue o homem, enquanto ele está estruturado pelo existencial da disposição. A angústia se precipita quando o homem toma consciência de que foi atirado ao mundo, numa condição de abandonado no mundo, de sua solidão como ser no mundo. “A angústia do ser diante do mundo é uma angústia do homem frente à sua própria solidão”, frente à sua condição original de ser para a morte, de ser finito, de ter que se fazer ou se reafirmar como ser no mundo a cada instante de sua existência. Quando o homem se depara com a sua morte, com o quanto ela lhe é própria e próxima, ele toma consciência de que é um ser para a morte e, portanto, um ser finito. Da mesma forma que somente o homem pode realizar o seu ser, também apenas ele pode morrer a sua morte. Ter que “ser” e ter que “morrer”, expressam a extrema solidão e a angústia latente do homem. E, na tentativa de fugir da solidão e da angústia o homem escapa de si e da sua morte e se atira ao mundo, na cotidianidade supérflua de sua existência, tornando-se um ser decadente. E é na decadência que o homem desvia de seu ser e de sua morte e pode viver a ilusão de que ele já é. E de que sua morte está distante, que só os “outros” morrem, já que as pessoas não costumam pensar na sua própria morte e daí ela é algo que cabe somente aos outros.
Segundo Heidegger, a angústia traz para o homem a sua verdade mais íntima, da qual ele procura escapar, verdade esta que o identifica como “ser”, e como “ser finito”. Para fugir desta percepção ontológica e da falibilidade material, o homem torna-se decadente e passa a viver mais na impropriedade do que na propriedade de seu ser. Pois a decadência propicia ao homem os momentos de prazer, ou seja, a sensação de tranqüilidade, a sensação de onipotência, a sensação de ordem, propicia o controle de sua existência. Donde se pode dizer que o “ser” em questão é um “ser” decadente que se angustia com o seu próprio ser no mundo.
Cabe lembrar que a angústia, por ser um modo do existencial que possibilita a singularização do homem, é considerada por Heidegger como disposição fundamental porque além do caráter de singularização da existência humana, ela também abre a possibilidade do homem sair da decadência e de se apropriar efetivamente do seu “ser”. Portanto, a angústia é a abertura que permite ao homem interpretar-se a partir de si mesmo e não a partir da publicização do mundo. Pois a angústia retira o mundo do homem e lhe restitui o ser no mundo, aí o homem não tem como escapar de si e fugir para o mundo. Ele está face a face consigo; esse é o momento de se ver no “espelho” existencial, de se ver assim como se é. E, na medida em que o homem está só consigo e que apenas ele pode realizar o seu ser, ele se singulariza como ser no mundo, como um ser livre e capaz de assumir com propriedade ou impropriedade o seu “ser”.
Para concluir esta resenha e ao mesmo tempo realizar um paralelo entre o conceito de angústia em Heidegger, a partir de então, discutirei o seu conceito de angústia paralelizando com obras como a de José Saramago - Ensaio sobre a Cegueira. Assim como o filme produzido a partir da obra de Saramago e dirigido por Fernando Meireles. Também utilizarei como aporte discursivo, a literatura de Graciliano Ramos – Angústia, que retrata com muita propriedade o conceito de angústia em Heidegger, a partir do seu protagonista Luís.
Li Saramago e Graciliano há muito tempo e parte do que descreverei foram as impressões deixadas por estas leituras antigas, mas, como recentemente vi o filme baseado na obra de Saramago, creio que estarei um pouco melhor embasado para paralelizar o conceito de angústia.
Recordo-me que quem tinha mais problemas com a cegueira na obra de Saramago era quem não queria enxergar a realidade. Nesse sentido, esta relação da impossibilidade de ver me faz rememorar os personagens da Alegoria platônica. E tanto na obra de Platão, quanto na obra de Saramago e, também traduzida na filmografia de Fernando Meireles, a grande questão é: “aquele que vê pode decidir o que os outros devem fazer?”. Ao meu ver, aquele que vê faz toda a diferença, mas ao mesmo tempo, este que vê tem medo de abrir os olhos. Daí, este medo de abrir os olhos é aquele medo demonstrado por Heidegger quando diz que, “o homem deixa de “ser” quando opta pela atividade de vida cotidiana, quando opta pela impropriedade da vida”. E nas palavra de Saramago, esta dificuldade de abrir os olhos, esta dificuldade de se ver e de ver as coisas é: “percebermos que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”.
Obras como as de Heidegger, Saramago e Graciliano Ramos e, muito anteriormente a obra de Platão, primam pela crítica aos valores da sociedade, demonstrando que a cegueira desvenda as características primitivas do ser humano. Pois todos os sentimentos são desvendados nessas obras, o poder, a obediência, a ganância, o carinho, o desejo, a vergonha; o universo dos dominadores, dos dominados, o universo dos subjugadores e dos subjugados.
No Ensaio de Saramago, a angústia Heideggeriana é representada pela personagem central, uma mulher, a única que vê e que secretamente manterá a sua visão. É a partir dela que Saramago mostra as ações e reações do ser humano às necessidades, à incapacidade e à impotência, ao desprezo e ao abandono. O trabalho de Saramago também nos faz refletir sobre a moral, sobre os costumes, sobre a ética e preconceitos através dos olhos vívidos da personagem central. É a personagem que vê, é a única que se depara com as situações inadmissíveis, pois mata para se preservar e também para preservar aos demais.
Diz Saramago em sua obra: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem”. Nesse contexto podemos refletir: a) o medo cega? b) já éramos cegos no momento em que nos cegamos? c) o medo nos cegou? d) o medo nos fará continuar cegos?
De outro modo, mas universalizando o conceito de angústia heideggeriano e com um poder doentio de auto-análise, Luís, personagem do livro Angústia de Graciliano Ramos, tinha consciência que levava uma vida de idiotia e de muita frustração. A partir daí, desenvolve uma ojeriza, um asco aos outros e a si mesmo. Esta obra de Graciliano, uma das mais importantes do modernismo brasileiro, consegue passear pelo campo social, pelo campo psicológico e pelo existencialismo heideggeriano. Vemos na obra de Graciliano o Dasein heideggeriano no personagem Luís, assim como o vimos na personagem que “vê” de Saramago. Pois cabe ressaltar que, a questão fundamental da filosofia heideggeriana não é o homem mas sim o ser, o sentido de ser. E o ponto de partida necessário de toda tentativa em “determinar” o sentido do ser do ente geral, era o homem como “ser-aí” ou o denominado Dasein. Pois, como já descrito por mim em parágrafos anteriores, “o homem é o único ao qual é, de fato, exigida uma solução para o problema do existir”. Assim, o Dasein é o único que pergunta, é o único capaz de se questionar sobre o sentido do ser e esse processo é o trabalho que também faz a hermenêutica. É nesse sentido que Heidegger, Graciliano e Saramago são autores que propiciam reflexões de caráter universal sobre a existência humana. Portanto, obras como, Angústia e Ensaio sobre a Cegueira são adequadas para a discussão e compreensão do conceito de existencialismo e angústia em Heidegger e também em Sartre. Ao meu ver, Graciliano e Saramago estiveram em profunda sintonia com seus respectivos tempos. Graciliano em Angústia e Vidas Secas e Saramago em O Ensaio sobre a Cegueira, pois ambos souberam sutilmente capturar as nuances psicológicas, as nuances individuais e sociais da obra de Heidegger, mesmo que indiretamente. Principalmente quando o ser humano se vê desorientado com os descaminhos que tomaram a civilização do século XX.
BIBLIOGRAFIA
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. bras. de Márcia Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1993. Vol. I.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. Cia das Letras
RAMOS, Graciliano. Angústia. Editora Record.
PLATÃO. Alegoria da caverna.
VIDEOGRAFIA
MEIRELES, Fernando. Ensaio sobre a Cegueira.2008.

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